O APOIO MÚTUO, UM FATOR DE EVOLUÇÃO: DOIS PREFÁCIOS DE PIOTR KROPOTKIN E SUA BIOGRAFIA, POR ASHLEY MONTAGU.
Tradução do espanhol, direta do russo, por Luís Orsetti, pela Editorial
Projeção, Argentina, Buenos Aires, 1970.
Tradução ao português por Evaldo Amaro Vieira, cotejada com a edição inglesa.
PRÓLOGO À
PRIMEIRA EDIÇÃO RUSSA
Enquanto preparava a impressão desta edição russa
de meu livro – a primeira traduzida do livro MUTUAL AID: a FACTOR OF EVOLUTION, e não dos artigos publicados na
revista inglesa – aproveitei a oportunidade para revisar cuidadosamente todo o
texto, corrigir pequenos erros e completar os Apêndices, baseando-me em algumas
obras novas, em parte a respeito da ajuda mútua entre os animais (Apêndices
III, V, VI e VIII), e em parte a respeito da propriedade comunal na Suíça e na
Inglaterra (Apêndices XVI e XVII).
Bromley, Kent. Maio 1907.
NOVO PREFÁCIO DE KROPOTKIN
Minha pesquisa sobre ajuda mútua entre animais e entre homens foi impressa pela primeira vez na revista inglesa “Nineteenth Century”. Os dois primeiros capítulos, sobre sociabilidade em animais e sobre a força adquirida por espécies sociáveis na luta pela existência, foram respostas ao artigo do conhecido fisiólogo e darwinista Huxley, aparecido no “Nineteenth Century” em fevereiro de 1888 – “A luta pela existência: um programa” - , onde a vida dos animais foi pintada como uma luta desesperada de um contra todos. Após o aparecimento dos meus dois artigos em que refutei essa opinião, o editor da revista, James Knowles, expressando muita simpatia pelo meu trabalho, pedindo-me para continuar, observou: “Não há dúvida de que você demonstrou sua posição em relação aos animais, mas qual é sua posição em relação ao homem primitivo?”
A
respeito da questão do homem, respondi também em dois artigos onde, depois de
um cuidadoso estudo da rica literatura moderna sobre as complexas instituições
da vida tribal, que os primeiros viajantes e missionários não puderam analisar,
descrevi estas instituições entre os selvagens e os chamados “bárbaros”. Esta
obra, e especialmente o conhecimento da Comuna rural no início da Idade Média,
que desempenhou um papel enorme no desenvolvimento da civilização que renascia
novamente, levaram-me ao estudo da etapa seguinte, ainda mais importante, do
desenvolvimento da Europa – da cidade medieval livre e suas guildas de
artesãos. Apontei o papel corruptor do Estado militar que destruiu o livre
desenvolvimento das cidades livres, suas artes, artesanato, ciências e
comércio. Mostrei, no último artigo, que, apesar do colapso das federações e
dos sindicatos livres devido à centralização estatal, essas federações e
sindicatos começam agora a desenvolver-se cada vez mais e a conquistar novos
domínios. A ajuda mútua na sociedade moderna constituiu, assim, o último artigo
da minha obra sobre a ajuda mútua.
Ao
editar esses artigos em livro, introduzi alguns acréscimos essenciais,
principalmente da relação de minhas opiniões com a luta darwinista pela
existência. Nos Apêndices citei alguns fatos novos e analisei algumas questões
que, por causa da brevidade, tive de omitir nos artigos da revista.
Nenhuma
das traduções nas línguas da Europa Ocidental, nem as escandinavas e polonesas,
foi feita baseada nos artigos, e sim no livro. Por isto, continham as adições
expostas no texto e nos Apêndices. Das traduções para o russo, somente uma que
apareceu em 1907 no Editorial Conhecimentos (Znania) estava completa. Além
disso, introduzi vários apêndices novos, com base em novas obras, parte sobre
ajuda mútua entre animais e parte sobre a propriedade comunitária de terras na
Inglaterra e na Suíça. As outras edições russas partiram dos artigos da revista
inglesa, e não do livro. Portanto, elas não possuem as adições feitas por mim
ao texto ou omitiram os Apêndices. A edição oferecida agora contém todas as
adições e os Apêndices, todo o texto e a tradução novamente revisados por mim.
P.K.
Dmitrof,
março de 1920.
PREFÁCIO
DO PROFESSOR ASHLEY MONTAGU
O
APOIO MÚTUO de PIOTR KROPOTKIN é um dos grandes livros da humanidade. Isto
evidencia, entre outras coisas, o fato de ser constantemente objeto de
reimpressão. É difícil consegui-lo, até nas bibliotecas, pois parece ter
permanente procura. Compreende-se assim que recebamos sempre com satisfação
toda reedição de tão notável obra.
O
autor, o Príncipe Piotr Ayexeyevich Kropotkin, nasceu em Moscou em 1842. A
família Kropotkin pertencia à mais alta aristocracia russa e descendia dos
Príncipes de Smolensk e de Kiev. O pai de Piotr era militar, proprietário de
terras e de servos. A mãe, Ekaterina Sulima, faleceu prematuramente na idade de
35 anos, quando o menino tinha apenas três anos e meio de idade. Ekaterina foi
uma criatura muito carinhosa e delicada, e o amor que dedicou a seus quatro
filhos – Nicolás, nascido em 1834; Elena, um ano mais jovem; Alexander, nascido
em 1841, e Piotr, vindo ao mundo em 1842 – acompanharam-nos por toda a vida.
“Bastava conhecê-la para amá-la”, escreveu Piotr em suas MEMÓRIAS. “Em seu
nome, Madame Burman cuidou de nós, e em seu nome nos encheu de amor a
preceptora russa... Toda nossa infância foi iluminada por suas lembranças.
Quantas vezes, em algum canto escuro, acariciava-nos, Alexander ou eu, a mão de
um criado. Quantas vezes no campo uma camponesa vinha até nós e nos perguntava:
você será tão bom quanto sua mãe? Ela tinha muita compaixão por nós. Certamente
será como ela. 'Nós' significava, é claro, os servos. Não sei o que seria de
nós se os servos não tivessem criado em nossa casa aquela atmosfera de carinho
de que as crianças precisam tanto ...
"Os
homens desejam fervorosamente viver após a morte; mas a maioria deixa este
mundo sem perceber que, quando uma pessoa é realmente boa, sua memória
permanece eternamente viva. Essa lembrança é registrada na próxima geração, que
a transmite para a descendência. Não vale a pena obter esta imortalidade?"
Citei
tal passagem em detalhe, porque considero que ela explica em parte a personalidade
de Kropotkin, além de mostrar sua compreensão e simpatia pelos servos deste
mundo. Em seus escritos, Kropotkin lembra repetidamente a bondade e a grandeza
de alma dos servos que conheceu em sua infância. Por eles lutou toda sua vida,
por eles e por todos quantos viviam servos de seus próprios preconceitos.
Como
era costume nas famílias aristocráticas, Piotr foi enviado ao Corpo de Pajem
para receber educação militar; esta vida não lhe agradava. Por suas leituras,
chegou à conclusão de que a Sibéria seria o lugar ideal para dar livre curso a
suas inclinações naturais. A geografia, a zoologia, a botânica e a antropologia
da região eram pouco conhecidas. Por isso, Kropotkin decidiu solicitar sua
transferência para um regimento siberiano. A ideia horrorizou o pai, que
considerou totalmente absurda a escolha do filho. Preferir a Sibéria a uma
brilhante carreira na Corte? Finalmente, foi obrigado a ceder e assim, em 24 de
julho de 1862, seu filho Piotr partiu para a Sibéria.
Kropotkin
realizou notável e original trabalho nos campos da geografia, da geologia e da
zoologia. A Sociedade Russa de Geografia publicou suas observações
meteorológicas e geográficas, estudos pelos quais lhe outorgou uma medalha de
ouro. A teoria de Kropotkin sobre o desenvolvimento da estrutura da Ásia é tão
importante que seria suficiente para reservar-lhe um lugar permanente na
história da geografia científica. Durante toda sua vida conservou vivo
interesse pela geografia, ao qual sempre dedicou alguma atividade. Além de dar
palestras sobre o assunto e publicar ensaios em revistas científicas e
publicações não especializadas, redigir artigos sobre geografia para a
Géographie Universelle de Reclus, para a Chambers Encyclopaedia e para a
Encyclopaedia Britannica.
Os
trabalhos de Kropotkin em zoologia são produtos da experiência direta. De 1862
até fins de 1866, quando deixou a Sibéria, aproveitou todas as oportunidades
para interpretar os segredos da vida natural. Influenciado por A Origem das
Espécies de Darwin (1859), como nos diz no primeiro parágrafo da presente obra,
pesquisou ansiosamente em busca dessa “rude luta pelos meios de subsistência
entre animais pertencentes à mesma espécie, considerada pela maioria dos
darwinistas (embora nem sempre pelo próprio Darwin) como a característica
fundamental da luta pela vida e o principal fator da evolução”.
Mas
sua experiência direta, o que ele viu com seus próprios olhos, despertou em
Kropotkin sérias dúvidas sobre a teoria darwiniana, dúvidas que não encontraram
plena expressão a não ser quando surgiu ocasião para isto no famoso “Struggle
for Existence Manifesto”. (“Manifesto da luta pela vida” de T. H. Huxley,
intitulado “The Struggle For Existence: A Programme” (“A luta pela vida: um
programa”).[1]
A vida
na Sibéria produziu outra grande mudança nas ideias de Kropotkin. Compreendeu a
“absoluta impossibilidade de fazer algo realmente útil para a massa do povo por
meio da mecanismo administrativo”. E acrescenta em suas MEMÓRIAS: “Abandonei
essa ilusão para todo o sempre... Na Sibéria perdi toda fé na disciplina
estatal. Estava preparado para entrar no caminho do anarquismo.” Ele fez isto
e, nesse caminho, continuou até o fim de seus dias.
A
convivência com os siberianos que viviam à margens do Amur mostrou-lhe o
importante papel desempenhado pelas massas anônimas em todos os eventos
históricos, comprovação que o impressionou profundamente.
“Dos
19 aos 25 anos”, escreve, “tive de elaborar importantes planos de reforma,
lidar com centenas de habitantes do Amur, preparar e realizar perigosas expedições
com meios ridiculamente escassos, etc.; e se tudo isso terminou de modo mais ou
menos feliz, deveu-se unicamente ao fato de que logo descobri que um trabalho
sério é pouco útil para comandar e disciplinar. Em todas atividades, são
necessários homens de iniciativa, mas uma vez dado o impulso, a empresa deve
seguir em frente, especialmente na Rússia, não de maneira militar, porém por um
tipo de acordo comum, através do entendimento mútuo. Seria bom que todos
aqueles que baseiam seus planos na disciplina estatal, estudassem a escola da
vida real, antes de criarem suas utopias estatais. Nesse caso, não se ouviria
falar tanto, como agora, em planos para organizar a sociedade em uma pirâmide
sobre base militar.”
Essa
passagem nos dá a chave da filosofia anarquista de Kropotkin. Quando se diz
anarquista, as pessoas imaginam um sujeito de pele pálida e grandes bigodes
pretos esgueirando-se furtivamente, carregando uma granada ou uma bomba caseira
em cada mão. É verdade que tais anarquistas militantes existiam, mas Kropotkin
desaprovava-os totalmente e lamentava tal conduta. Em seu conceito, o
anarquismo fazia parte da filosofia que deveria ser tratada da mesma maneira
que as ciências naturais; era o meio de estabelecer a justiça (isto é, a
igualdade e a reciprocidade) em todas as relações humanas e em todo o mundo. A
melhor maneira de alcançar o domínio da justiça consistia em eliminar por
completo o Estado e qualquer forma de governo, substituindo-os pela cooperação
livre e espontânea entre indivíduos, grupos, regiões e nações.
Kropotkin
repudiava toda forma de violência, embora, chegado o momento, tenha apoiado a
causa dos aliados em sua guerra defensiva de 1914-1918, contra os alemães, uma
posição que indignou muitos de seus companheiros anarquistas. Ele era um homem
singularmente afável e encantador, que conquistou o respeito de quantos o
conheciam e ainda é lembrado com carinho por aqueles que com ele trataram
pessoalmente. Disse Bernard Shaw acerca dele: “Kropotkin era uma pessoa gentil
a ponto da santidade; com sua grande barba avermelhada e expressão agradável,
ele poderia muito bem ter sido um pastor da Montanha das Delícias”. Assim ele
sintetizou a opinião geral sobre o grande anarquista.
Em
1874, Kropotkin fui detido e aprisionado na Fortaleza de São Pedro e São Paulo,
durante dois anos, pelo crime de difundir propaganda revolucionária. Após uma
fuga espetacular, ele fugiu disfarçado para a Suécia, de onde se transferiu
para a Inglaterra, pais em que desembarcou em agosto de 1876. Lá, se
estabeleceu como jornalista, depois de vencer certas dificuldades e logo
conquistou amplo circulo de amigos.
Em 8
de outubro de 1878 casou-se com Sofia Ananiev, nascida em Kiev em 1856, de pais
judeus. Aos 17 anos, indignada com as condições de vida dos homens que
trabalhavam na mina de ouro de Tomsk, Sibéria, administrada por seu pai, Sofia
recusou-se a viver com o dinheiro obtido com a exploração e deixou a casa de
seu pai para ganhar a vida por si mesma. É fácil ver o vínculo de simpatia que
uniu estes dois seres. Na época em que se casaram, Sofia estudava biologia em
Berna, enquanto seu marido foi obrigado a permanecer em Genebra por motivo de
trabalho. Durante um tempo eles levaram vida de “ciganos”, como ele mesmo
dizia. A mútua devoção manteve-se inalterada pelo tempo em que viveram. Depois
de 9 anos de casamento, nasceu sua primeira e única filha, a quem deram o nome
de Alexandra, em memória do irmão de Kropotkin, falecido recentemente. Expulso
da Suíça como sujeito perigoso, Kropotkin retornou a Londres, cidade onde Alexandra
nasceu em abril de 1887.
Deixo
de mencionar a prisão e o encarceramento de Kropotkin, na França em dezembro de
1882, sua posterior liberação e seus inúmeros obstáculos com os espiões e com a
polícia de meia dúzia de governos de países europeus. Nas Prisões da Rússia e
da França (1887), ele nos relata pormenorizadamente estes episódios. Nem
exporei sua participação ativa na promoção do movimento anarquista. Só direi de
passagem que ele organizou e participou de vários congressos, criou jornais e manteve
prodigiosa correspondência internacional, durante o tempo em que trabalhava
como jornalista freelance para sustentar sua família. Chegamos assim a 1888,
ano que marca o começo do período de O APOIO MÚTUO.
Uma
vez que na Introdução à obra, o próprio Kropotkin nos conta o que o levou a
escrevê-la, será supérfluo historiar os fatos que o fizeram redigir os artigos
depois reunidos em um livro. Aqui me limitarei a esboçar a história de O APOIO
MÚTUO desde sua publicação, com uma avaliação da obra, em particular de acordo
com os conhecimentos acumulados posteriormente.
Entre
os fatos relacionados com a publicação de O APOIO MÚTUO, cabe destacar um muito
notável: a série de artigos, que como tal apareceu originalmente em “The
Nineteenth Century”, foi escrita com intenção de refutar o ponto de vista
apresentado por T. H. Huxley, mas este jamais replicou publicamente, nem
mostrou ter conhecimento da existência destes escritos, apesar de sem dúvida os
tenha lido, pois era assíduo leitor da referida publicação. Os primeiros
ensaios de Kropotkin sobre a ajuda mútua apareceram em 1890. Porém sete anos
antes, em 1883, estando Kropotkin preso na França, seus amigos ingleses
prepararam uma petição enfatizando a importância de suas contribuições
científicas e solicitavam sua imediata libertação. Foram convidados homens de
ciência e escritores a assinar a petição. Disseram que T. H. Huxley recusou a
pôr seu nome, atitude que muitos tomaram como “grosseria” de sua parte. Quem
assim pensa está equivocado. Nesse mesmo ano tinha sido nomeado Presidente da
Sociedade Real e considerou que tal cargo lhe proibia certas coisas, conforme
evidencia numa carta: “Enquanto eu for Presidente da Sociedade Real, me
sentirei obrigado a não participar de movimentos públicos que os membros da sociedade
possam desprovar”. Com relação ao silêncio de Huxley, pode-se supor que ele
desejasse esperar até que Kropotkin terminasse de expor seus argumentos e
reunisse seus ensaios em um volume, como era conhecido por ele. O último dos
artigos apareceu em 1896 e o livro, em 1902... Sete anos depois da morte de
Huxley.
Num
artigo publicado pelo “The Nineteenth Century” em 1888, Kropotkin expressou
juízos críticos referentes a certos conceitos de subsistência e de população
expostos por Huxley em seu “Struggle for Existence Manifesto” (“Manifesto da
luta pela vida”). Este último enviou ao editor James Knowles uma carta pessoal
em que assinalava que Kropotkin não o havia compreendido bem, acrescentando:
“Não obstante isto, considero seu artigo muito interessante e importante”.
Quando Knowles o convidou a publicar uma réplica nas páginas da publicação, o
biólogo respondeu-lhe que estava doente, confessando: “não me acho em estado
mental ou nervoso para fazê-lo, e só a ideia de entrar em controvérsia me leva
a preocupar”.
Huxley
pode realmente ter admirado Kropotkin, como muitas outras pessoas, mas sua
situação física já não lhe permitia empreender a difícil tarefa de discutir
seus argumentos, como eles mereciam. De qualquer forma, mesmo que Huxley
pretendesse refutar Kropotkin, no devido momento, a morte, que ocorreu a ele
antes de terminar a exposição, impediu-o de executar seus planos. Acho
necessário esclarecer esses fatos para fazer justiça à memória de um grande
homem, apaixonado pela verdade, mesmo quando essa verdade mostrava que ele
estava enganado.
Embora
O APOIO MÚTUO tivesse sempre enorme quantidade de admiradores e tenha influído
sobre o pensamento e a conduta de muitos, também é verdade que ele foi mal
interpretado por quem conheceu o livro por segundos ou terceiros, ou o leram em
sua juventude e guardaram confusa lembrança de seus conceitos.
É erro
geral acreditar que Kropotkin se propôs a demonstrar que é a ajuda mútua, e não
a seleção ou a competição natural, o principal ou único fator a atuar no
processo evolutivo. Num livro de genética publicado recentemente por uma grande
autoridade na matéria, lemos: “O reconhecimento da importância da cooperação e
da ajuda mútua na adaptação não desmente de modo algum a teoria da seleção
natural, segundo interpretaram Kropotkin e outros”.
Os
leitores de O APOIO MÚTUO perceberão logo até que ponto é injusto este
comentário. Kropotkin não considera que a ajuda mútua contradiz a teoria da
seleção natural. Uma e outra vez chama a atenção para o fato de que existe
competição na luta pela vida (uma expressão que ele critica acertadamente com
motivos sem dúvida aceitáveis para a maior parte dos darwinistas modernos). Uma
e outra vez destaca a importância da teoria da seleção natural, que aponta como
a mais significativa do século XIX. O que acha inaceitável e contraditório é o
extremismo representado por Huxley em seu ensaio “Struggle for Existence
Manifesto”, e assim o demonstra ao qualificá-lo de “atroz” em sua MEMÓRIAS. Por
justo que seja o juízo de Kropotkin, e por execrável, violento e danoso o
artigo de Huxley possa ter sido,devemos reconhecer que ele o escreveu com
profunda sinceridade e com o brilho habitual . além disso, se encaixava
perfeitamente na filosofia do laisser-faire que dominava naqueles dias,
ideologia que Kropotkin considerava repudiável por suas consequências tanto no
campo da política quanto na teoria da evolução. Seus longos anos de análise do
assunto decidiram sua resposta exaustiva a Huxley.
As
únicas duas pessoas que apoiaram Kropotkin em sua aventura foram James Knowles,
editor de “The Nineteenth Century”, e H. W. Bates, autor notável do livro
extraordinário “The Naturalist on the Amazons” (1863) e secretário da Sociedade
Geográfica Real.
Pela
atitude dos outros, Kropotkin pôde verificar que a interpretação da “luta pela
vida”, como um grito de guerra de “frio dos fracos!, elevado à categoria de
mandamento da natureza revelado pela ciência, estava tão profundamente
enraizado na Inglaterra que se tornou dogma quese religioso. Seria difícil para
ele se fazer ouvir.
Hoje
em dia O APOIO MÚTUO é a mais famosa das muitas obras escritas por Kropotkin. A
rigor, é já um clássico. O ponto de vista está avançando, lenta mas firmemente,
e seguramente se tornará parte das formas de agir da biologia evolucionária
aceitas em breve.
Se
analisarmos os dados apresentados por Kropotkin, bem como os argumentos
baseados neles, e os considerarmos à luz do conhecimento científico reunido nos
vários campos adotados pelo O APOIO MÚTUO, veremos que, em termos gerais, ele
os confirmam. As obras de Allee e discípulos, Whieler, Emerson e outros em
ecologia, os estudos de grande número de antropólogos (muitos para citar),
sobre povos primitivos e analfabetos, e as descobertas de naturalistas
empíricos, confirmaram cada um deles, de maneira categórica, as principais
teses de Kropotkin.[2] O APOIO MÚTUO nunca perderá sua validade, como a
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. A ciência continuará
contribuindo com novos conhecimentos, porém com certeza servirá apenas para confirmar
a conclusão de Kropotkine. “O fator fundamental do progresso ético do homem tem
sido a ajuda mútua, não a luta mútua. O fato de continuar sendo praticada em
larga escala também é a melhor garantia de que a raça humana prosseguirá uma
evolução cada vez maior.”
Desde
o final do século XIX até o início da guerra de 1914, Kropotkin trabalhou
intensamente em um número incrível de atividades, além de produzir sete livros.
Quando ele se declarou a favor dos aliados, muitos de seus seguidores ficaram
surpresos, sem saber o que pensar. No entanto, Kropotkin estava certo de que
sua posição era justa. A Revolução Russa de 1917 pareceu-lhe justificar
duplamente sua atitude. Assim que as condições permitiram os Kropotkin se
despediram de seus amigos ingleses e partiram para a Rússia, onde chegaram em
meados de 1917, sendo muito bem recebidos em todos os lugares. Quando Kerensky
lhe ofereceu um posto no novo governo, Kropotkin se recusou a aceita-lo. Ele
argumentou que a Rússia deveria continuar lutando contra a Alemanha e
recomendou o estabelecimento de uma república moderada (para desgosto de seus
amigos anarquistas), mas ninguém ouviu. Suas conversas com Lenin foram inúteis.
Os últimos anos de Kropotkin foram tragicamente infelizes. Seu coração inocente
não havia contado com os Lenin deste mundo. Vendo o que ele sonhara para o
futuro da Rússia sendo destruído pelos bolcheviques, principalmente Lenin,
escreveu-lhe para apontar os fatos criticáveis, o que sempre fazia se
considerasse oportuno, como já o tinha avisado. No outono de 1920, Kropotkin se
indignou quando os bolcheviques começaram a tomar reféns para se proteger de
possíveis violências de seus adversários. Sem demora, ele escreveu a Lenin
estas palavras veementes e proféticas:
“Acabei de ler no Pravda desta data uma
declaração oficial do Conselho dos Comissários do Povo, segundo a qual foi
decidido tomar vários oficiais como reféns para proteger-se contra o exército
de Wrangel. Não posso acreditar que não tenha ao seu lado alguma pessoa para
dizer que tais decisões lembram os momentos mais sombrios da Idade Média, o
período das Cruzadas. Vladimir Ilitch, suas ações distorcem completamente as
ideias que você pretende aprovar.
Você
não sabe o que é um refém em verdade? Não sabe que é um homem mantido prisioneiro,
por não haver cometido um crime, mas simplemente porque ele serve a seus
inimigos para extorquir seus companheiros? Um refém deve se sentir como um
condenado à morte, cujos carrascos anunciam a cada meio-dia-o adiamento da
execução para o dia seguinte. Se você aceita tais métodos, é de prever-se que
um dia você use tortura, como se fazia na Idade Média.
Espero
que ele não tenha argumentado que o poder é um dever profissional do político e
que qualquer ataque ao poder deve ser considerado ameaça contra a qual é
necessário defender-se a qualquer custo. Até os reis não continuam mantendo
essa ideía. Os governantes de países onde a monarquia continua há muito tempo
deixaram de lado os meios de defesa que agora surgem na Rússia com a tomada de
reféns.
Como
você, Vladimir Ilitch, você que quer ser apóstolo de novas verdades e arquiteto
de novo Estado, consente com o uso desses meios repulsivos, de métodos tão
inaceitáveis? Tomar essas medidas significa confessar publicamente que você
adere às ideias do passado.
Mas,
talvez, ao tomar esses reféns, não estará você meramente tratando salva der sua
própria vida e não de sua obra?
Está
tão cego, tão aprisionado em seu autoritarismo. Não consegue entender que, por
ser o líder do comunismo europeu, não possui o direito de sujar suas ideias com
métodos tão vergonhosos. Métodos que não são apenas provas de um erro
monstruoso e também prova de um medo injustificável por sua própria vida?
Que
futuro aguarda o comunismo se um de seus campeões mais importantes pisoteia
todos os sentimentos honestos dessa maneira?”
Acho
que todos sabemos a resposta.
Kropotkin
estava desesperado. Ele tentou consolar-se iniciando um trabalho sobre ética
que representava a continuação do O APOIO MUTUO[3]. Com sua morte ocorrida em 8
de fevereiro de 1921, a obra ficou inacabado. Como ele mesmo disse: “Quando uma
pessoa é verdadeiramente boa, sua memória permanece eternamente viva. Esta
memória é gravada na geração seguinte, que a transmite aos seus descendentes.
Não é uma imortalidade que vale a pena obter? E Kropotkin obteve.
Ashley Montagu
Princeton, N.J.
[1]
Trabalho aparecido em The Nineteenth Century (Londres), v. 23, fevereiro de
1888, pp. 161-180. Em O APOIO MÚTUO, Kropotkin intitula-o equivocadamente “A
luta pela vida com relação ao homem”. Se bem que este seja o tema do artigo,
não é seu título correto.
[2]
The Direction of Human Development de M.F.Ashley Montagu, Harperrx and Bros.
New York, 1955, detalha os estudos que apoiam a teoria de Kropotkine.
[3]
Piotr Kropotkin, Ethics: Origin and Development, Dial Press, New York, 1925.